NOVOS MUNDOS NOVOS
para meu irmão eduardo
para meu irmão eduardo
“Apesar de todas as suas vantagens materiais, a vida sedentária nos deixou irritáveis, insatisfeitos. Mesmo depois de quatrocentas gerações em vilas e cidades, não esquecemos. A estrada aberta ainda nos chama suavemente, quase como uma canção esquecida da infância. Atribuímos um certo romance aos lugares remotos. A minha suspeita é de que o apelo tem sido meticulosamente elaborado pela seleção natural, como um elemento essencial de nossa sobrevivência. Longos verões, invernos amenos, ricas colheitas, caça abundante – nada disso dura para sempre. Está além de nossos poderes predizer o futuro. As catástrofes têm um modo de nos atacar sorrateiramente, pegando-nos desprevenidos. Talvez você deva sua vida, a de seu bando ou, até mesmo, a de sua espécie a uns poucos inquietos – levados, por um desejo que mal podem expressar ou compreender, a terras desconhecidas e a novos mundos.”
Carl Sagan. “Os errantes: uma introdução”.
In: Pálido Ponto Azul, 1994
O pretexto é a passagem do navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón pela costa brasileira em janeiro de 1500, meses antes da chegada oficial de Pedro Álvares Cabral. Sem querer comprovar quem de fato nos descobriu, pois na arte é possível superar conflitos políticos e limitações históricas, a exposição aborda o imaginário relacionado a inquietudes e impermanências associadas ao Ciclo dos Descobrimentos, do qual, brasileiros habitantes do Novo Mundo, a uma só vez resultamos como herdeiros e como herança.
Tratando de personagens não consagrados pela história, mas de seus coadjuvantes – com quem Pinzón se irmanava e se ocupou de mencionar quando, já falido por consequência de sua viagem e deprimido pelas constantes investidas dos credores, refere-se a eles como “gente valorosa e valente, a quem não quis constranger nem oprimir cobrando-lhes minha dívida, por se tratar de pessoas necessitadas” –, encontramos outros exemplos inspiradores para esta exposição, como o do italiano Antonio Pigafetta, um dos 18 sobreviventes dentre os cerca de 260 integrantes da expedição de Fernão de Magalhães, empreendida pela Espanha em 1519.
Autor da Relazione del Primo Viaggio Intorno al Mondo, seu relato constitui um dos poucos e mais completos testemunhos náuticos e linguísticos sobre a expedição da qual nem mesmo o chefe Magalhães sobrevivera. Homem comum porém inquieto, Pigafetta teria despertado voluntária e diletantemente a vontade de integrar a expedição tão pronto lhe ouvira comentar:
No ano de 1519 estava eu na Espanha, na corte de Carlos V, rei dos romanos, com Monsenhor Chiericato, então protonotário apostólico e predicador do Papa Leão X (...) Pelos livros que havia lido e pelas conversações que tive com os sábios que frequentavam a casa do prelado, soube que navegando pelo Oceano via coisas maravilhosas. Assim, me determinei assegurar por meus próprios olhos a veracidade de tudo que contavam para, por minha vez, contar a outros minhas viagens, tanto para entretê-los e ser-lhes útil como para tornar-me um homem que passasse para a posteridade.
Antonio Pigafetta. A Primeira Viagem ao Redor do Mundo, 1525
Como consequência, seus escritos esboçam para a ciência moderna o modelo do viajante-pesquisador que a partir do século XIX multiplicaria, de forma exponencial, a atitude de explorar sistematicamente o inexplorado, de buscá-lo nos confins do planeta ou nas estrelas fora dele. Na ficção, tal experiência se revela no imaginário de personagens como os de Júlio Verne ou, antes dele, no viajante náufrago Robinson Crusoé, representado na exposição pela pintura de João Câmara. Ali, João associa Crusoé às leituras e memórias de sua infância, por onde percebemos o alcance dessas influências em nossa tenra imaginação.
Mesmo não tratando Pinzón como herói oficial, cerceado pelas circunstâncias de uma insuficiente e restritiva historiografia, é necessário vê-lo como personagem destacado em nossa história, pois nele se expressa a coragem e o brilho impetuoso de homens movidos pela aventura, pela busca de conhecimento, ambição ou até cobiça, mas sempre com vital coragem para enfrentar o temível desconhecido.
Entretanto, mesmo a extrema valentia por aventurar-se não deveria ser jamais incompatível com a humildade e a prudência diante do incomensurável caminho. Disso já havia tratado Dante Alighieri (1265-1321) quando, na Divina Comédia, descreve a condenação de Ulisses ao círculo infernal dos “maus conselheiros”, por haver suscitado seus companheiros de viagem a cruzar os limites do desconhecido. A fronteira, no caso, eram os limites ocidentais além do Mar Mediterrâneo, que Dante descreve como lugar “órfão de gente”. Ulisses então justifica que nem o amor pelo filho e pela esposa, nem a compaixão pelo pai “puderam vencer dentro em mim o ardor que tive por ganhar experiência do mundo, ardor dos humanos vícios e valores”.
Decidi então explorar o mar aberto e profundo, acompanhado de minha tripulação fiel. Passamos Espanha e Marrocos, e continuamos além dos pilares (Gibraltar) que por Hércules foram sinalizados para além dele não ultrapassar homem nenhum. Navegamos em mar aberto por cinco meses, com a vela sempre à esquerda, até que vimos no horizonte uma enorme montanha. Mesmo distante, apagada e escura, nunca eu vira outra assim tão grande. Mas nossa alegria durou pouco e logo transformou-se em pranto. Da nova terra saiu um grande redemoinho que atingiu a nossa embarcação na popa. Três vezes o barco rodou até que na quarta fomos sepultados nas profundezas do oceano.
Dante Alighieri. A Divina Comédia – Inferno, canto XXVI, c.1304-1308
Glórias e heroísmos... tudo é demasiadamante relativo. Em algum lugar Pinzón é protagonista de um grande feito no emaranhado de epsódios que, de Marco Polo a Fernão de Magalhães, ajudaram a aproximar Oriente e Ocidente. Se estas são intrincadas relações que formam a base de nossa cultura ocidental moderna, é de crer que haverá sempre riquezas por se revelar, na chance de conhecermos melhor as culturas do passado: aqueles estranhos e antigos mundos.
Afinal, o que é o antigo? E o novo? Quem ou o que os determina? Falar do Descobrimento do Brasil é, de certa forma, polemizar a questão até onde fomos “descobertos”, ou para quem isso representaria, de fato, “novidade”?
O que mais a exposição Novos Mundos Novos nos sugere trata de imaginação, da intuição e de algumas virtudes e habilidades humanas antecedentes a qualquer invenção ou descoberta. Estejam elas contidas naquilo que se inventa ou naquilo que se descobre, nosso foco recairá no modo como alguns artistas exploram o mundo novo em resultados ou processos de criação.
Imaginação e imaginário estão aqui interligados para com eles apresentarmos nosso tema nem sempre de maneira explícita, já que, para alguns filósofos, imaginação significa abertura, indefinição e processo: imaginar no sentido de relacionar. Nesse campo, veremos, por exemplo, a obra do espanhol Antoni Muntadas, em cuja instalação se projetam cenas do filme The Spanish Earth, do cineasta Joris Ivens. De conotação política e historicamente “datadas”, as imagens ideologizadas de Ivens, aqui apropriadas liricamente por Muntadas, tratam de uma Espanha moderna mas fora do tempo, já quase não real, ou quem sabe real apenas no imaginário do espanhol.
Boa parte da extensa obra de Brennand, por sua vez, contém a perfeição e a totalidade das coisas na forma física e arquetípica do ovo, de onde tudo ainda vai nascer. Sua síntese atávica é a condição inventada pelo artista para expressar tantas e tamanhas erudições em uma só vida, na forma que é gênese de uma outra forma ou na totalidade que tem em seu fim o começo de uma outra; eterno estado de apreensão e de “vir a ser”; síntese de saberes científicos e mitológicos, sem deixar de ser a expressão de arte em que, acima de tudo, contam saberes estéticos e poéticos.
Por outro lado, de modo bastante radical, alguns artistas desta mostra nos surpreenderão com representações simbólicas já muito distantes da figuração e da visibilidade naturalista a que nosso tema pode estar ligado. É o caso de Sandra Tucci e Ana Crespo, que, apesar de parecerem superficialmente vinculadas a uma meia dúzia de tendências artísticas contemporâneas, vão além disso, pois estão na verdade aplicando conceitos estéticos muito antigos, vinculados à linguagem alusiva da mística islâmica da literatura persa de poetas como Firdawsi (940-1020), Nizami Ganjavi (1141-1209), Najmuddin Kubra (1145-1220) ou Jalaluddin Rumi (1207-1273).
Mesclas de preceitos estéticos, científicos e religiosos, muito provavelmente a Europa de Marco Polo, Leonardo da Vinci, Sheakespeare e Paracelso nutriu-se desse manancial para compor seu Renascimento. Esses princípios já se encontravam, entre outras obras, na Linguagem das Alusões [Al-Futuhat al-makkiyya (fi marifat al-isarat)], do filósofo andaluz Ibn Arabi (1165-1240), mas demoraria séculos para retornar ao Ocidente de forma tímida e em “doses homeopáticas”, como nas abordagens estéticas implícitas na fenomenologia do espírito de Hegel (1770-1831), no pensamento de Heidegger (1889-1976), Bachelard (1884-1962), ou já explicitamente nas pesquisas de Henri Corbin (1903-1978) e William Chittick. Apesar da mística islâmica deixar de protagonizar o repertório filosófico e científico ocidental, sobretudo a partir da Contra-Reforma, não seria de todo impertinente lembrar que até o século XV ela circulava livremente pelo continente, afluindo pelo nordeste europeu de influência otomana e pelo sul da Espanha, integrado à cultura intercontinental do Al-Andaluz – região-sede da indústria náutica ao tempo das descobertas e dos principais portos de onde partiram Colombo, Pinzón e Magalhães. É lá que está a terra natal dos Pinzón e também, há poucos quilômetros a leste, a cidade de Granada, escolhida como centro político dos reis católicos logo após a retirada dos árabes. Ali, no Palácio de Alhambra, antiga sede do domínio mouro, Carlos V mandaria construir também sua central administrativa, quartel-general das decisões sobre os destinos das terras além-mar.
Não parece incoerente conjecturar que essa mesma região serviu, durante séculos, de entrada para o Oriente restituir ao Ocidente os saberes variados dos antigos matemáticos, astrônomos e argonautas, a ponto de ali consolidar todo tipo de conhecimento necessário à exploração marítima, e com ele aportar na América no mesmo ano da retomada do controle em Alhambra. Nem é de todo estranho perceber nesse processo o entrecruzar de mitologias, com enredos paralelos de personagens comuns às diversas narrativas sagradas. Uma das mais belas dessas narrativas fala justamente sobre a criação do mundo, e é contada por Jami (1414-1492) em sua versão para o romance Yusuf e Zulaika. Yusuf (o José bíblico, filho de Jacó e intérprete dos sonhos do faraó) é apresentado a Adão no momento em que O Criador lhe incumbe de dar nome a todas as coisas criadas:
Os peritos em pérolas do mar das ideias, intérpretes da inspiração divina, no relato sobre a origem do mundo, contam que, quando Adão abriu os olhos para a luz, Deus fez aparecer perante ele seus descendentes, colocados de acordo com sua hierarquia: no nível superior, os profetas, segundo seus méritos; logo após os santos, ocupando a região do esquecimento de si mesmos; atrás deles, o fausto dos soberanos ornados com a tiara da majestade real; e, por fim, os simples mortais em uma ordem perfeita.
Adão passeou seu olhar por esta multidão, examinando sucessivamente cada uma dessas categorias, e em seguida Yusuf (José) o atraiu para si como se fosse uma bela lua, ou melhor, como o sol no zênite de sua glória e esplendor. Destacava-se entre a multidão como uma tocha, e a beleza dos demais eclipsava-se perante a sua, como os astros se apagam quando brilha o sol. Seus ombros estavam adornados com o manto da Graça, enquanto cem devotos, com hábitos de monge, ofereciam-se como o preço do resgate do pó dos pés dele. A perfeição de sua beleza extrapolava a mais ardente imaginação e desafiava a mais profunda e habitual reflexão. O favor divino o cobria como vestes de honra; sua testa, aureolada com a majestade real, brilhava como a aurora de um dia feliz, e o resplendor de suas faces transformava as trevas em luz.
E todos os profetas, grandes e pequenos, purificados de qualquer envoltura corporal, e as legiões dos santos espíritos com seus estandartes, de pé naquele santuário iluminado por tão resplandecente sol, louvavam o Senhor: La ilaha illallah! «Não há outro deus senão Deus».
Maravilhado diante de tanto esplendor, Adão, assombrado, perguntou ao Criador: «Senhor, de que roseira procede este caule? Que olhos terão o direito de contemplá-lo? Por que pode gozar de tão insigne privilégio, e de onde vem tanta beleza e majestade?».
Uma voz lhe respondeu: «Ele é a luz de teus olhos; aquele que devolve a alegria a teu coração aflito. É um broto do jardim de Jacó, uma gazela da planície do Amigo de Deus. A cúpula de sua grandeza é mais alta que Saturno e seu trono ergue-se na terra do Egito. A formosura de seu rosto excita a inveja dos mais belos. Segura um espelho diante de teus olhos e recompensa-o com teu tesouro.
Adão respondeu: «Deixarei aberta para ele a porta da generosidade e, de toda a beleza destinada aos homens, lhe concedo duas terças partes, de forma que os demais disporão apenas de um terço para compartilhar».
Depois o atraiu para seu peito e lhe ofereceu toda a ternura de seu amante coração. Revelou-lhe os sentimentos que lhe inspirava e o beijou paternalmente na testa. Graças ao amor por seu descendente, Adão sentiu-se florescer como uma rosa e, como o rouxinol, pediu para esta rosa as bênçãos do céu.
Jami. Yusuf e Zulaika, c.1483
Referindo-se às alusões contidas neste e em outros poemas, Ana Crespo desenvolve séries de trabalhos com distintas nuances simbólicas conhecidas em certas combinações cromáticas, como na relação entre o vermelho e o branco, inspirada na configuração estelar de Vênus e Canope, citados pelo poeta Nizami. Ali a artista trata da simbologia da cor branca (da pérola), relacionada com a pureza da alma, num matrimônio que é também união espiritual com o vermelho (do rubi), cuja cor é a mesma da sarça ardente vista por Moisés na teofania. O mesmo acontecendo com os raios de luz colorida que tocam os corações na obra Ativação, de Sandra Tucci.
Mais do que personagens comuns a diferentes religiões, estas narrativas contêm uma forma alusiva de, por meio da imaginação profunda, representar cosmologias àquele tempo comuns na península ibérica devido à presença das culturas cristã, islâmica e hebraica. “O propósito das alusões não é a redefinição doutrinária de um sistema nem o ensinamento metódico e repetitivo de uma tese ou conjunto de ideias previamente estabelecido, apenas o impacto direto da comunicação, o efeito que um vislumbrar instantâneo suscita na consciência e na percepção do interlocutor, a partir de uma vivência concreta e real. Nesse sentido, a linguagem alusiva desempenha uma função fundamental e constitui um procedimento insubstituível no processo de transmissão de experiência imediata ou compreensão interna.”[1] Da mesma maneira que disseminam seu repertório místico e imagético, esses poemas penetram a cultura de diversos povos onde foram ouvidos e absorvidos, amalgamando influências hoje difíceis de separar e reconstituir. Exemplo notório é outro poema de Jami, sua versão do amor puro e transcendental de Layla e Majnun, cujo enredo moldaria o cancioneiro trovadoresco europeu, desembocando no Romeu e Julieta de William Shakespeare (1564-1616).
Dessa forma, desde as planícies tártaras que se islamizavam aos povos godos depois de cristianizados, Ásia e Europa intercambiavam mais do que seda, peles e especiarias. Marco Polo inaugurou uma nova era no imaginário fantástico europeu com seu Livro das Maravilhas, de 1298, relatando o que viu de civilizações nas grandes cidades como Constantinopla, Bagdá, Kashgar e Pequim, e do retorno dessa sua viagem de 24 anos passando pelo arquipélago indonésio, Ceilão, Índia, Armênia até de novo Veneza, naquela que seria a viagem inaugural do Ciclo dos Descobrimentos. Momento em que dois velhos mundos – Oriente e Ocidente, circunstancialmente cindidos desde a queda do Império Romano – voltam a se integrar e se reconhecer num mundo renovado: um antigo mundo novo.
Desde sempre, as grandes cidades foram e ainda são lugares de oportunidades. Dentre elas, as oportunidades de o indivíduo renovar-se e experimentar o novo, resultando na formação de novas gentes. Disso trata a obra de Eder Chiodetto e Lester Weiss, que, não por acaso, tomam o Brasil – respectivamente São Paulo e Salvador – para mostrar nossas metrópoles como lugares de diversidade e transformações socioculturais.
Com a ideia de focar o Brasil como paradigma, não poderíamos deixar de citar a experiência visionária, arquitetônica e social que é a cidade de Brasília. Antes mesmo da curadoria explicitar essa vontade, André Venzon concebeu seu projeto a partir da releitura da Coluna Alvorada, de Oscar Niemeyer, referindo-se a uma situação alegórica que, à revelia do sonho do arquiteto, nos mostra um país onde “tudo parece que é ainda construção e já é ruína”.[2]
Não sem motivo, todos esses espaços urbanos se tornam também cenário de confrontos de identidades diversas, por onde são encenadas reivindicações várias, permeadas de transgressões e conflitos, como vistas no trabalho de Choque Photos.
Encenações são também o tema de Paulo Meira, com personagens e lugares poéticos, ao mesmo tempo que carregados de contradições e perversidades; marcos de memória que discursam, muitas vezes tentando assumir instâncias oficiais, porém não indo muito além de serem oficiosas.
É curioso lembrar, a partir dos “diplomas” e “certificados” pintados por Paulo Meira, os mapas e cartografias “falsos” executados no período dos descobrimentos para enganar adversários, concorrentes do mercado de especiarias e espiões de segredos de Estado. O refinamento dedicado a estes ardis, bem como suas graves consequências, faziam deles instrumentos táticos equivalentes ao poder de fogo das armas de guerra, da diplomacia e da pirataria nos destinos das grandes nações.
No que diz respeito aos documentos legítimos, na sequência das cartografias executadas entre os séculos XV e XVI por Toscanelli (1474), La Cosa (1500), Cantino (1502), Waldseemüller (1507) até o Mapa das Capitanias Hereditárias (1574), vemos surgir gradualmente a representação de nada menos do que um continente inteiro, a América. Se isso nos parece um tanto mágico, o aperfeiçoamento tecnológico e científico, bem como os novos tratados de perspectiva e a invenção da imprensa, contribuíram decisivamente para que o bestiário medieval fosse apagado, sendo substituído por atributos menos fantásticos e monstruosos, e mais naturalistas. Para onde teriam migrado esses símbolos, figuras e personagens? Surpreende-nos saber que, resgatados pela arte, eles atravessaram o Atlântico e chegaram ao Nordeste brasileiro, onde, por séculos, permanecem quase intactos em nosso repertório popular “carregado” de erudição. Tratando do universo simbólico dessas imagens tão fantásticas quanto arquetípicas, fruto de cruzamentos entre imaginação e imaginário, estão as obras de Gilvan Samico.
Alguns poderão perguntar e desde já fica registrada a deliberada inciativa de, nesta exposição, havermos evitado associações simplórias do termo “novos mundos” com “novas tecnologias”. A quase ausência de novas mídias e suportes eletrônicos aqui se dá para melhor compreendermos qual conceito de novidade estamos tratando: a novidade que encontra-se no olhar, ou por ele é “fabricado”, no olho e na mente de quem vê. Abordagem que, sem grandes elucubrações, justifica a marcante presença da linguagem fotográfica.
Mais do que na técnica da fotografia, a arte de Caio Reisewitz está essencialmente em seu olhar. Suas imagens possuem a inquietante função de reconstituir o deslumbramento da imaculada visão dos recém-chegados aos mundos novos, sejam estes o Cabo de Santo Agostinho visto por Pinzón, a Porto Seguro avistada por Cabral, a Baía de Guanabara captada nos primórdios da fotografia por Augusto Malta e Marc Ferrez, ou o outro lado de sua cidade, uma vez que, para quem vive numa megalópole como São Paulo, cada esquina é um novo mundo novo. Esses olhares-lugares de Caio, mesmo quando reconhecíveis, são inquietantes pela atmosfera metafísica que apaga os indícios do observador, fazendo crer que tal paisagem jamais tivesse sido assistida nem devassada pela visão comum.
Algo semelhante está também na atmosfera das aquarelas de Cassiano Pereira Nunes. Mesmo que nelas apareçam o rastro indelével e figurativo da presença humana, ou sua alusão, a técnica da aquarela, neste caso, deve ser entendida como o mais evidente destes rastros, uma vez que esta técnica tem se prestado como eficiente linguagem artística aplicadas aos ímpetos exploratórios do homem ao longo de séculos. Segundo Bachelard, pelos princípios imaginativos da matéria, o elemento água se torna o meio de contato com o inconsciente. É dele que partem os recursos psíquicos para enfrentarmos o que é misterioso, desconhecido e ameaçador. Ao menos na prática, isso é o que tem demonstrado a eficiência da aquarela como ponte midiática para estudos, projetos e outras prospecções científicas do real, diante de diferentes territórios, situações ou ecossistemas, sendo os mais notórios os cadernos de campo dos artistas e exploradores do século XIX.
De acordo com as premissas poéticas da exposição, a máquina de Daniel Herthel e Maria Leite é nossa única chance de citação “tecnológica”. Por ela sinaliza-se a superstição comum na Idade Média de que autômatos estão associados a criações demoníacas, que desrespeitam o princípio básico da criação, pois lhe copiam a forma sem preencher-lhe do sopro de Espírito, atributo único e supremo do Criador. Aos homens era dada a chance de descobrir e conhecer, mas jamais criar realmente um mundo novo. Este conceito seria modificado radicalmente pelo Renascimento, e graças a isso a obra de Daniel e Maria, na linha das invenções de Leonardo, a ele se afilia como um exemplar lírico, de evidente parentesco com o dom do homem de inventar máquinas para o bem da humanidade.
Pamen Pereira costuma expor ambientes e situações literalmente suspensas no ar. Apesar dessa marcante presença do mundo material em sua obra, com peso e gravidade real das coisas, “tudo é tremendamente frágil. A vida é um delicado jogo de espelhos, como se tudo fosse suspenso ‘por um fio’”. [3]
Por fim, já que “do pó viemos”... uma outra alusão na obra de Marcelo Silveira sintetiza o rastro como metáfora da vida, na qual lutar é tão significativo quanto vencer; existir, tanto quanto conquistar; viajar, tanto quanto chegar; ou, como dito pelo tão citado poeta, é preciso navegar, mais do que viver.
Esta exposição traça um paralelo entre ideias e conceitos de mundos novos e antigos que sempre se renovam. É assim que o já antigo Novo Mundo americano se mistura ao Velho Mundo ibérico e, no caso do Brasil, segue se renovando com influências de mundos outros. Mundos que na arte espelham culturas diferentes. Ressonâncias que aproximam vastos e antigos universos que nunca cessarão de se renovar, transmutando-se eternamente em novos mundo novos.
Gilberto Habib Oliveira / jun. 2010
[1] PABLO BENEITO. El lenguaje de las alusiones: amor, compasión y belleza en el sufismo de Ibn Arabi. Murcia: Consejería de Educación y Cultura. Ed. Regional, 2005
[2] CAETANO VELOSO, letra da música “Fora da Ordem”. Circuladô, 1991
[3] DOKUSHÔ VILLALBA. “Todo pende de un hilo”. This is a Love Story, jul. 2009 (Cat. de exposição)
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